Quando as fotografias eram a preto e branco, os carros nasciam a cores, e por detrás de cada grande marca houve sempre uma grande cor. Ou várias. Esta é a sua história.

O Benz Motorwagen de 1886, alegadamente o primeiro automóvel da história, parecia a bandeira nacional. A carroçaria era verde. O motor, aberto, estava pintado de vermelho e o assento era amarelo… Isto hoje pode parecer estranho aos nossos olhos, habituados a ver desfilar um conjunto de automóveis monocromáticos, mas nem sempre foi assim.

É verdade que a famosa frase de Henry Ford, em relação ao Model T parece indicar o contrário: “pode ser de qualquer cor, desde que seja preto”, mas Henry não tinha qualquer predilecção especial pelo negro, e inicialmente o modelo até era vendido em diferentes cores. Ford estava sim obcecado por cortar nos custos de produção do modelo, o primeiro a ser construído numa linha de montagem, e o primeiro a ser suficientemente acessível a um americano de classe média. O preto era a cor que secava mais depressa, pelo que se tratou de uma decisão puramente prática.

Enquanto isso, na Europa, tomavam-se decisões que iam afectar para sempre as cores com que muitas marcas viriam a ser conhecidas. Na viragem do século, o automóvel era a sensação do momento, e organizavam-se cada vez mais competições deste novel desporto. Um dos maiores entusiastas era James Gordon Bennett, Jr., outro milionário norte-americano que decidiu oferecer ao Automóvel Clube de França uma taça para “organizar uma corrida anual entre os principais clubes automóveis”. As Gordon Bennett Cup não ficariam para a história, mas uma das decisões da organização sim. Uma vez que os concorrentes competiam essencialmente em nome de um Automóvel Clube, e, portanto, de um país, decidiu-se que as cores dos concorrentes deviam representar essa procedência.  A França escolheu o “Bleu” tradicional, a Alemanha o branco, os Estados Unidos o vermelho e a Bélgica o amarelo. Na primeira prova, corrida em 1900, apenas os dois Panhard azuis franceses, conduzidos por Fernand Charron e Léonce Girardot conseguiram terminar, dando assim início a uma longa tradição colorida que se estendeu aos Delahaye, aos Bugatti, aos Alpine, e outros.

 

British Racing Green

Os ingleses só participariam numa Gordon Bennett Cup em 1902, pelo que as cores da sua bandeira já estavam tomadas. No entanto, o Napier escolhido para competir tinha um tom verde azeitona que, pareceu-lhes, representava bem o país e foi assim que decidiram avançar. A cor da esperança confirmou-se com a vitória na prova, e isso implicava organizar a competição do ano seguinte. Problema: as Gordon Bennet Cup eram provas de estrada, e não eram permitidas corridas fora dos circuitos em Inglaterra. A escolha recaiu então na Irlanda, ainda sob o domínio de Sua Majestade e foi também como homenagem ao país anfitrião que o Shamrock Green (ou verde trevo) foi oficialmente adoptado como a cor de Inglaterra nas competições automóveis. Mas nunca foi definido um verde padrão, razão pela qual cada marca pode escolher a sua própria tonalidade de Racing Green. Foi nos seus tons, portanto, que Bentley, Aston Martin ou Jaguar deram tantas alegrias aos britânicos.

 

Branco heráldico

Ainda na Gordon Cup inaugural, de 1900, os alemães inscreveram Eugen Benz com um carro branco montado pelo seu pai, Karl, lançando assim a Alemanha no “Racing White” com que a generalidade das marcas competiu nos anos seguintes. No entanto, em meados da década de 1930, a Mercedes (seguida pela Auto Union) surgiu com os carros em alumínio não pintado. Diziam as más-línguas que tinham sido forçados pela necessidade de manter os automóveis dentro dos limites de peso, mas na verdade o alumínio a nu era um avanço da indústria aeronáutica que as marcas quiseram aproveitar e, como não tardaram a afirmar também, branco e prata, em heráldica, são considerados exactamente a mesma cor. Os Silver Arrow ficaram para a história e são, ainda hoje, a cor de eleição da Mercedes e Audi, embora outras, como a BMW, permaneçam fiéis ao branco tradicional (ainda que com as listas da divisão de corrida M).

 

Rosso Corsa

Como vimos, os americanos tinham escolhido inicialmente o vermelho para si, mas como nunca se conseguiram realmente afirmar em competição, a cor não chegou a ganhar protagonismo oficial. Com os italianos passava-se exactamente o contrário, desde que o príncipe Borghese tinha levado o seu Itala vermelho à vitória no raid Pequim-Paris. Assim, se do lado de lá do Atlântico começavam a adoptar outras cores, como o preto e o branco, para além do vermelho, deste lado, Alfa Romeo, Maserati e Lancia venciam cada vez mais provas de vermelho, levando a AiACr (antepassada da Federação Internacional do Automóvel) a atribuir a cor aos italianos.

MASERATI Ghibli Trofeo

Enzo Ferrari, que “nasceu” na Alfa Romeo, herdou essa tradição competitiva e elevou o Rosso Corsa ao pináculo da fama mundial. No entanto, fora das pistas, a companhia aproximava-se muito mais do Amarelo Modena, que escolheu para o símbolo. Curiosamente, quando a Lamborghini nasceu para competir com a Ferrari, adoptou rapidamente o amarelo como seu e hoje já o associamos mais à marca do touro do que ao Cavallino Rampante.

Pelo meio, os EUA tomaram outra decisão, esta muito inteligente do ponto de vista do marketing, que foi pintar duas listas (stripes) contrastantes ao longo do carro. Isto permitia que os seus bólides fossem mais facilmente identificados nas fotografias e filmagens a preto e branco, e foi com essas riscas (brancas sob fundo vermelho) que a Ford veio à Europa bater a Ferrari, na mítica Le Mans de 1966.

 

Uma cor muito pessoal

Nos últimos 40 anos, os tons neutros foram tomando conta da indústria automóvel, ainda assim há excepções de peso. O actual director de design da Porsche (e de todo o grupo Volkswagen), Michael Mauer, tem o desejo secreto de fazer da cor um dos principais argumentos da marca. Para isso, montou recentemente um verdadeiro atelier de cores em Zuffenhausen, e tem vindo a desenvolver uma gama exclusiva de tonalidades, recuperando cores icónicas e permitindo até criar um serviço de personalização, onde os clientes podem escolher a sua cor única.

Vassily Kadinsky já o dizia − mais ou menos na mesma altura em que Ford proferia a sua famosa frase − “a cor é uma força que influencia directamente a alma”. Tal e qual como um desportivo.

A área do Lifestyle tem muito poucos segredos para Bruno Lobo, jornalista com mais de 15 anos de experiência. Da moda aos automóveis, da relojoaria à tecnologia, da gastronomia à beleza. Porque “a vida é bem mais agradável com estes pequenos grandes prazeres”. GQ e Fora de Série são duas revistas onde o seu cunho se sentiu mais forte, mas já colaborou com várias revistas nacionais e internacionais, incluindo a Turbilhão, “com enorme prazer por poder contribuir para este projecto editorial”.