Há quem a apelide de tesouro escondido. A sua colecção de relógios é mais conhecida no estrangeiro do que cá. Quadros da Escola Holandesa, como O Cobrador de Impostos, de Pieter Brueghel, o Jovem, destacam-se pelas paredes de dezenas de salas. As porcelanas chinesas ou as pratas fazem parte de um acervo que demorou meio século a juntar. Franqueiem-se então as portas da Casa-Museu Medeiros e Almeida.
“Não me parece que algum coleccionador saiba a sua verdadeira motivação”. A frase, do fotógrafo Robert Mapplethorpe, transporta-nos de imediato para o fascinante e eternamente misterioso mundo do coleccionismo. Já o poeta Walter Benjamin recorda-nos que “qualquer paixão roça o caótico, mas as paixões de um coleccionador entram pelo caos das memórias”.
Coleccionar é uma arte e uma paixão. Uma arte, porque o coleccionador é impulsionado por uma visão artística pessoal, que segue regras subjectivas; uma paixão porque o impulso do coração face ao objecto cobiçado é impetuoso e forte. Este encontro entre arte e paixão dá geralmente lugar à excelência.
Uma colecção está intimamente ligada à pessoa que a faz e à vida que ela leva. Colecção e coleccionador alimentam-se mutuamente, de tal modo que a primeira se plasma de forma natural na pessoa que a criou. O impulso do coleccionador, entre o racional e o apaixonado, é a semente criadora de um mundo coerente, de uma linguagem estética própria, que só vale pelo conjunto.
Em pleno centro de Lisboa, numa transversal da Avenida da Liberdade, há uma casa-museu relativamente desconhecida, fruto da vontade e das vivências de um dos maiores coleccionadores portugueses do século XX. Como todas as casas-museu, também esta tem a vantagem de, a par de mostrar as peças de colecção, juntas ao longo de meio século, nos fazer respirar o quotidiano do coleccionador.
Entremos então no mundo de António de Medeiros e Almeida (1895/1986). “Desde os meus 20 anos, isto é, desde 1915, comecei a interessar-me por antiguidades, que passei a adquirir a partir dos meus 30 anos, quando as minhas posses o permitiam”, escrevia ele em Janeiro de 1978. “Esse interesse foi-se desenvolvendo com intensidade e a pouco e pouco fui coleccionando peças raras de valor artístico e histórico como móveis, tapetes, lustres, loiças, bibelots, leques, relógios, pratas, quadros, jóias, livros, cristais, azulejos, tapeçarias, peças de arte sacra, estatuária, etc.”
A colecção
O acervo reunido por Medeiros e Almeida está exposto por toda aquela que foi a sua residência, transformada em casa-museu pelo próprio no início da década de 1970. A fundação viria a ser criada em 1973, e todos os bens passaram para sua propriedade. São cerca de 30 salas, onde colecções europeias de pintura, mobiliário, tapeçaria, arte sacra, vidro e joalharia, desde o século XVII à actualidade, espelham o dia-a-dia deste empresário multifacetado.
“À medida que o tempo ia correndo, tornei-me mais exigente, e por isso fui pondo de parte determinadas peças e substituindo-as por outras mais valiosas. Assim, a selecção tem-se mantido cada vez mais rigorosa”, recordava ele há 34 anos. “Algumas dessas antiguidades foram adquiridas com certa dificuldade, umas vezes por os seus donos não quererem desfazer-se delas, outras por os seus preços estarem fora do meu alcance. Casos houve em que, para as adquirir, tive de esperar anos, e outros em que para as observar e discutir a compra fui obrigado a deslocar-me por esse mundo fora. Mas o facto é que cada uma dessas peças, reunidas ao longo de 50 anos, faz hoje parte do meu ser e reflecte o meu gosto.”
Destaque para o conjunto de porcelanas chinesas, desde terracotas pré-históricas até peças das dinastias Han, Wei, Tang Song ou Ming. Desta, Medeiros e Almeida adquiriu exemplares raros das primeiras encomendas feitas pelos portugueses na China do século XVI. Já da última dinastia, a Qing, estão patentes peças de exportação dos períodos Kangxi e Qianlong, até ao final do século XVIII, ostentando muitas delas os brasões das famílias portuguesas que fizeram as encomendas. O núcleo das pratas inclui duas baixelas do prateiro inglês Paul Storr (1792/1838) e pratas portuguesas do século XVI ao XVIII, incluindo uma colecção de cerca de 80 paliteiros de prata portuguesa e porcelana Vista Alegre.
O coleccionador
Medeiros e Almeida foi o maior coleccionador de relógios do século XX em Portugal. Isso traduz-se na mais valiosa colecção de marcadores de tempo que existe no país. São cerca de 250 relógios, desde o século XVI até à actualidade, entre exemplares de caixa alta, de mesa, de bolso. Os exemplares Breguet sobressaem, alguns deles peças únicas, mandadas fazer por encomenda.
Fotografia: Francisco Fonseca e Casa-Museu Medeiros e Almeida
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