No bestiário da Cartier há um felino capaz de seduzir o mais empedernido critico de tudo o que é precioso. A Pantera tem acompanhado a história da Maison Parisiense e regressa agora à colecção de relojoaria da casa fundada por Louis-François Cartier.
“Sinuosa, silenciosa, ágil e graciosa, imperiosa, letal, selvagem, e cruel”, é assim que Bérénice Geoffrey-Schneiter descreve a Pantera no inicio da obra dedicada à relação entre a Cartier e o seu eterno felino. Uma verdadeira simbiose à qual a casa Parisiense dedicou uma parte significativa da sua arte e criatividade, reconhecendo que o apelo do grande gato não está limitado a uma era ou lugar em particular.
É que a Pantera é indiscutivelmente a orgulhosa líder do grupo de animais que compõem a famosa “menagerie” do joalheiro francês. Mais nenhuma outra criatura alcançou um estatuto de ícone tão marcado e indissolúvel na colecção de um joalheiro e, provavelmente, em todo o design joalheiro do século XX.
Profusamente usada na arte, design, moda e interiorismo, a Pantera foi no inicio do século XX um símbolo de exotismo e colonialismo, evocando o romance da aventura e um conceito particular de nobreza. Uma imagem em consonância com o espirito independente de feminilidade que emergiu logo após a primeira grande guerra.
A Pantera na Arte e na História
Um símbolo de poder, sedução e triunfo desde os tempos mais antigos, a Pantera tem sido capaz de capturar o imaginário dos mais diversos artistas desde há 30.000 anos. A sua representação tem variado entre uma pose estática, mas majestosa, e a aparência do seu movimento singular, exultando poder e agilidade num momento roubado ao tempo.
Entre os artistas que conseguiram capturar e transmitir esta sensação de movimento, assim como as linhas fluidas do majestoso felino, encontram-se nomes como Eugène Delacroix, François Pompon, Yatsui Koji, Erté, Antoine-Louis Barye, Henri Rousseau, Rembrandt Bugatti ou Paul Jouve.
A Pantera era temido tanto por animais como pelo homem, pelo que a mais pequena parecença metafórica entre um governante e o felino eram uma garantia de respeito e reverência por parte dos seus súbditos. Figuras míticas como Dionísio, e mesmo faraós egípcios como Tutankámon renderam-se a esta zoolatria que acabou por influenciar o charme sedutor do estilo Art Deco.
A Pantera é, pois, uma constante para quem pesquise os arquivos da Cartier ao longo do século XX, onde não é possível encontrar uma década onde o felino não apareça sob alguma forma, adaptando-se sem esforço ao estilo de cada época. A sua primeira aparição nos arquivos da Maison data de 1914, acreditando-se que tenha sido Charles Jacqueau (1885-1968), um designer da casa e um pioneiro da joalharia Art Deco, quem traduziu pela primeira vez o padrão da pantera para a mescla de diamantes e ônix da bracelete de um relógio. Um estilo, então designado por “pavage peau de panthére”, que poderá ter auxiliado a definir a imagem monocromática da joalharia na década de 1920, e que Jacqueau ensaiava já em 1913.
Ao primeiro relógio de pulso com o padrão da Pantera segue-se um relógio pendente em 1915. Em 1917 mais um relógio, desta vez baseado na caixa “tortue”, e em 1919 um bracelete de tornozelo com duas Panteras em platina, diamantes e ónix. As primeiras braceletes flexíveis em platina, com diamantes e ónix no design da Pantera, aparecem em 1922, fazendo evoluir o estilo para uma verdadeira assinatura Cartier, reconhecível a partir dai em todas as peças da Maison inspiradas no grande felino.
Toussaint ou Cassati?
Uma personagem em particular teve uma enorme importância e influencia na relação da Cartier com a Pantera. Jean Toussaint, amiga de Coco Chanel, amante de Louis Cartier e directora criativa de alta joalharia e relojoaria da Cartier entre 1933 e 1970, era apelidada precisamente por “La Phantère”, possivelmente, dizem, devido à sua agilidade mental e feroz determinação, mas também pela sua adoração incondicional por este elegante felino.
O episódio em que Toussaint decora as vitrinas da Boutique da Rue de la Paix exclusivamente com uma série de pequenos pregadeiras baptizadas “oiseau en cage”, é hoje um episódio lendário da história da Maison. Estávamos em plena ocupação Nazi da cidade de Paris e a mensagem era clara. O episódio valeu-lhe uma breve passagem pelos calabouços do alto comando alemão sediado no Hotel Majestic. Depois da libertação de Paris, Toussaint volta à carga, desta vez com o “oiseau liberé”.
A magnifica forma como o imaginário da Pantera foi explorado pela Cartier durante estes anos deve-se precisamente a Toussaint e a designers como Peter Lemarchand, que trabalharam sob a sua orientação. Foi o lápis de Lemarchand que acabou por definir o vigor, plasticidade e silhueta da Pantera nos anos 40, incutindo-lhe um inimitável sentido de movimento.
Mas a história parece omitir sistematicamente a enorme influência que a Marchesa Luisa Cassati teve durante o seu tempo. É que a excêntrica herdeira italiana, que se descrevia a si própria como uma “obra de arte viva”, ficou para a história como a personagem que no inicio do século XX melhor encarnou a mulher Pantera. Possivelmente a mulher mais representada na arte a seguir à Virgem Maria e Cleópatra, a Marchesa deambulou pela vida nocturna parisiense deixando uma impressão inesquecível em Colette, Elsa Schiaparelli, Coco Chanel e certamente também em Toussaint.
A extensa pesquisa feita por Ryersson e Yaccarino, para a publicação do seu livro “Infinite Variety”, apresenta argumentos fortes de que Cassati inspirou directamente a criação da Pantera da Cartier. O facto de se passear pela trela com chitas com coleiras de diamantes em vez de Panteras (vestida apenas com um casaco de peles sobre o corpo), não diminui a ideia de que Toussaint foi fortemente influenciada por esta mulher marcante em mais do que uma forma. É que ambas as espécies são notavelmente semelhantes em muitos aspectos. A influência estendeu-se a Sarah Bernhardt, que levava a sua Chita ao teatro, e até mesmo a Josephine Baker, que deixava a sua “Chiquita” (igualmente uma Chita) assistir à sua actuação a partir de um camarote.
Quando em 1914 George Barbier produz a sua aguarela para Louis Cartier, representando a imagem de uma mulher vestida com uma túnica ao estilo de Poiret, um colar de pérolas excessivamente longo e onde a atenção se foca na assimetria da pantera deitada a seus pés, já a Marchesa tinha sido profusamente fotografada na presença dos seus felinos. A singular pintura, de Joseph Rous Paget-Fredericks, representando Cassati com as suas chitas é hoje um testemunho desta época e um elemento de decoração habitual nas Boutiques da Cartier de todo o mundo, incluindo Lisboa.
Ouro por Platina
Na década de 1930, o ouro substitui a platina e a Pantera acompanha a evolução sendo o estilo revisitado na década de 1960 para se tornar um símbolo de status dos anos da “café society”. Mas ainda antes, em 1948, a Pantera assume pela primeira vez uma forma tridimensional quando o Duque de Windsor encomenda uma pregadeira para oferecer à Duquesa, Wallace Simpson, a quem a familia real britânica apelidava apenas de “that woman”.
Seria a primeira de diversas peças, representando a Pantera, adquiridas pelos Duques de Windsor à Cartier, gerando uma verdadeira loucura pelo felino tal como então ficou evidenciado no artigo da Vogue Americana, “Leopard with Authority”. A lista de celebridades que a partir dai adquiriram peças com a Pantera da Cartier é extensa e inclui nomes como Nina Dyer, Marella Agnelli, Maria Félix, Barbara Hutton, Maria Callas e Daisy Fellows.
Panthère de Cartier, uma jóia ainda antes de ser relógio
A relojoaria é uma faceta particularmente fascinante na arte da Cartier. Desde os relógios de bolso, pêndulos misteriosos, despertadores de viajem aos relógios de pulso, os medidores do tempo são um verdadeiro pilar da actividade da casa Parisiense ao longo dos anos. Nomes como o Santos (1904/1978), Tortue e Baignoire (1912), Tank (1917), Pasha (1943/1985) ou Crash (1967), fazem hoje parte de uma história de sucesso singular.
É em 1983, em pleno auge da era “Les Must de Cartier”, que surge a colecção Phantère. A primeira colecção totalmente dedicada ao felino assume-se como uma variação do modelo Santos com um bracelete com elos semelhantes a pequenos tijolos arredondados e articulados que pretendiam sugerir o movimento subtil do grande gato. A elegância e qualidade criativa destes elementos acabaram por marcar o regresso a uma certa abstracção, sugerindo a essência desta criatura já solidamente fundida no imaginário da Cartier. O modelo transforma-se rapidamente num dos best-sellers das criações relojoeiros da maison, mas acaba por ceder a sua importância a outras linhas surgidas com o inicio do novo milénio.
Era pois mais que tempo de trazer de volta o modelo inspirado no mais fascinante animal do bestiário da Cartier. A nova colecção, apresentada este ano, mantém-se estilisticamente fiel ao modelo de 1983 sendo composta por dois tamanhos distintos, com 22 e 27 mm, que incluem nove variantes entre ouro amarelo, rosa, branco, aço e uma combinação de aço e ouro. A selecção de modelos, que recorre exclusivamente a movimentos de quartzo, inclui ainda, como não podia deixar de ser, peças profusamente decoradas com diamantes.
De entre as propostas incluídas, destaca-se um belíssimo modelo de edição limitada em ouro rosa que conta com as famosas manchas da Pantera em esmalte negro, mas que neste caso assumem um formato rectangular que extravasa os elos do bracelete de forma a cobrir também a caixa e o mostrador. As manchas da Pantera revestem-se assim de uma importância crucial neste modelo, já que são elas as responsáveis por dar uma ilusão de volume que é consubstanciada pelas linhas suaves da caixa.
Um verdadeiro ícone cultural, a Pantera da Cartier foi desde sempre uma sedutora, meio anjo, meio demónio, a fonte de sonhos e um convite para uma viajem à imaginação. Nenhuma outra criatura se associou de forma tão indissolúvel e emotiva à mulher de estilo do século XX. E mesmo o advento do século XXI parece não querer contar a história de outra forma.
Para sempre moderna , rara e selvagemente civilizada, a afirmação de Leonardo DaVinci resume tudo ao confirmar que “até o mais pequeno felino é uma obra-prima”.