No diálogo entre a forma e a função, nessa diminuta palete criativa que é um relógio de pulso, há 100 anos que se faz do antigo, novo. Em tempo de incerteza, o apelo para o clássico e para o perene, para o valor seguro e simples, reforça-se. Para que o medidor de tempo lhe resista melhor e possa assinalar episódios marcantes da nossa vida, sendo ponte e memória entre gerações.
Em tempo de incerteza global, o apelo dos valores seguros, perenes, faz-se também sentir na relojoaria. Ou, por outras palavras, se os seus pais lhe derem um iPhone ou um smartwatch quando acabar o liceu, o que sobrará deles quando sair da universidade? É. Um gadget fica fora de moda, está ultrapassado, avaria sem conserto possível, ao fim de meses, anos no máximo. Um relógio mecânico de pulso, por mais antigo que seja, tem sempre vida longa, seguramente de mais de 100 anos, se mantido como deve ser, será cúmplice de bons e maus momentos de gerações, terá sempre histórias que contar e recordar.
Ora, património e perenidade levam a outra componente do verdadeiro luxo – aquilo que, de valor, material ou sentimental, ou ambos, tem possibilidade de ser reparado. E um relógio mecânico pode ser sempre reparado. Património perene e reparável requer, para resistir à espuma dos dias, formas clássicas, acima de modas e extravagâncias.
E o mundo da relojoaria percebe isso. Nos últimos anos, as marcas foram aos arquivos, ao ADN próprio, e começaram a fazer reedições, baseadas esteticamente em modelos vintage, com mostradores e vidros abaulados, cores pastel, braceletes de nylon ou malha tipo milanesa. Simples, com mostradores de dois ou três ponteiros, quando muito acrescentando uma data. E reduziram o tamanho das caixas, que começava a ser exagerado – acima dos 42 cm –, mas não tanto que chegassem aos 35 ou 36 mm dos relógios de homem dos anos 1930 e 1940. Nas senhoras, as caixas aumentaram para os 35 mm antes “masculinos” e não deverão descer muito abaixo disso, embora algumas reedições actuais, recordando os anos 1920, surjam com caixas de 25 mm, onde é praticamente impossível ver as horas, antes se está perante uma pulseira ou joia, adereço. O tempo volta para trás, mas não igual em tudo…
Há, como em tudo, excepções. Neste revivalismo, um modelo tem passado incólume, contra ventos e marés – estamos a falar do cronógrafo. Também ele revisitado, em estéticas dos anos 1950 a 1970, mas sempre na moda, sobretudo para o público masculino. Costumamos dizer que, nos relógios, acontece como nos carros – a carrinha funciona sempre melhor que o modelo base. Num relógio com pouco apelo estético, a versão cronógrafo como que ganha vida própria, fica mais equilibrada, é “outro” relógio.
Relojoaria e estilos – a forma antes da função
O relógio de pulso começou a massificar-se há exactamente 100 anos, quando milhares de soldados norte-americanos desembarcaram em teatro europeu, no âmbito da I Guerra Mundial. Mas seriam precisos mais 30 anos para que, no rescaldo da II Guerra Mundial, eles destronassem definitivamente o relógio de bolso como objecto pessoal imprescindível.
Desde esses primeiros tempos a indústria relojoeira sofreu as influências das grandes correntes estéticas do virar do século – o movimento da Arte Nova, surgido por volta de 1880 e que durou até ao início da I Guerra Mundial, por um lado; o movimento Art Déco, surgido no final da I Guerra Mundial. O primeiro glorificava a era industrial e a arquitectura do ferro; o segundo dava primazia à variedade de formas e cores. O terceiro grande movimento a influenciar a relojoaria foi o do design, principalmente a escola Bauhaus. E as preocupações teóricas em redor da forma e da função. Com força nos anos 1920, estendeu a sua influência com força até aos anos 1960.
A moda, com formas, materiais e cores, tomou definitivamente conta dos relógios a partir dos anos 1980, quando estes deixaram de ser simples marcadores de tempo para, lentamente, passarem a ser quase unicamente adereços, sinais que queremos dar de nós próprios, perdendo a sua tradicional perenidade. Mas a situação mundial, o sentimento colectivo, mudou. As dificuldades e incertezas tornam o consumidor mais resistente à compra por impulso, mais conservador e até nostálgico. Quer, quando gasta o seu dinheiro, ter em troca um objecto fiável e que dure. Esteticamente simples, que passe mais despercebido, e que possa ser usado com tudo e em todas as ocasiões.
A nostalgia do vintage domina. Muitas marcas decidiram ressuscitar dos arquivos modelos seus dos anos 1950 e 1960, não apenas imitando formas, como mesmo as cores “in” dessas décadas. Alguns exemplos desse movimento, com modelos que consideramos, perenes, marcantes na história da relojoaria, não só pelo seu valor técnico, mas mais pelo seu apelo estético.